sábado, 2 de agosto de 2008

A pior semana da minha vida


Um dia desses, lendo um dos blogs que já estão nos meus “favoritos”, me peguei a pensar sobre o medo. O amigo blogueiro escreveu sobre os dele, fazendo uma lista. Refleti muito sobre o medo, e cheguei à conclusão de que o meu maior e talvez único medo seja o de perder a coragem de seguir adiante, de enfrentar as agruras da vida – ao mesmo tempo sinto que isso nunca vai acontecer, portanto, não tenho o que temer. Mas uma experiência eu passei... não me lembro de ter sentido medo propriamente dito, só que a dor foi inenarrável. O texto é bem longo, porém o relato do que vivi nessa semana não caberia em cinco parágrafos.

Procurando uma foto pra ilustrar, me deparei com uma que me lembrou do medo de ser picada por cobra ou aranha, embora eu saiba que a peçonha desses animais não é necessariamente a mais prejudicial ao ser humano. Essa coral apareceu na minha garagem num dia que eu estava voltando do mercado e tinha um monte de coisas no carro pra descarregar. Ela tinha uns 15 centímetros e, segundo o bombeiro que a capturou, era uma “falsa-coral”. Eu é que não ia dar mole para aquela miniatura de serpente em plena selva amazônica!

A pior semana da minha vida

Era um domingo de março de 2001. E como sempre, ela entrava cedo em meu quarto, pois acordava segundo o relógio biológico e queria brincar. E eu queria dormir... e a colocava pra correr. Tantas vezes fiz isso... tantas vezes ela voltou pouco depois com meu café da manhã, arrumado à sua moda, em uma bandeja... mas naquela manhã ela não retornou. E eu nem dei falta, pois dormi novamente.

Quando me levantei, a vi prostrada no sofá, queimando em febre. Havia um leve inchaço avermelhado atrás da orelha... levei-a imediatamente pro hospital. Deram remédio pra baixar febre, disseram “parece caxumba”, mas o estranho é que ela já era imunizada contra parotidite. Como poderia ser? Voltamos pra casa e ficamos de molho o resto do dia.

Na segunda-feira ela já estava melhor e foi pra escola normalmente. E eu fui trabalhar. Porém na hora do almoço ela estava febril de novo, o tal edema atrás da orelha tinha aumentado e a pele ao redor estava enrubescida e quente: sinal de infecção. Retornamos ao hospital. Começou então a pior semana da minha vida.

Decidiram internar, embora não tenham dito exatamente o que era. Só disseram que precisava entrar logo no antibiótico endovenoso, que conteria o avanço da infecção de forma mais eficaz. Mas punçar uma veia nela... ah, ela era avessa à agulha. Ainda é, porém agora é mais “controlável”. Tinha apenas 5 anos, mas foram necessários quatro adultos para segurá-la, além da enfermeira que pegou a veia. Em seguida teve início a terapia antibacteriana de seis em seis horas. A pediatra não deu nenhum diagnóstico, porém o anestesista, Dr. Jorge, tentou me tranqüilizar dizendo “é linfoadenite, fazendo o antibiótico direitinho resolve”. E eu ia lá saber que bicho era esse?

O antibiótico entrava por ali, naquele “caninho”, como a gente falava pra ela. Mas era criança, inquieta... e perdia a veia com muita facilidade. Nos quatro primeiros dias de internação, foi uma veia por dia – e o mesmo drama para pegar uma veia nova. Eu conversava, falava que precisava de um novo “caninho”, ela concordava, mas quando a agulha chegava perto, ela gritava, se debatia e se encolhia. Então eu tinha que endurecer, falar grosso, até gritar com ela... e claro, segurá-la com muita força, com a ajuda de outros adultos. Em seguida, saía do quarto, abraçava o primeiro ser humano que estivesse no corredor e chorava.

Embora ela tenha começado no antibiótico logo no início da internação, a infecção ainda avançou por 3 dias, deformando o rostinho dela de uma forma horrível. A pediatra vinha todos os dias, eu perguntava o que era, e ela não dizia abertamente. Só dizia que estava sob controle. Raios! Com minha filha transformada num monstrinho, como é que a coisa poderia estar “sob controle”? Mas ela estava bem, tagarela, ativa. E quando ia escovar os dentes, eu não podia impedi-la de se olhar no espelho. No auge da infecção, ela olhou no espelho e me perguntou: “mamãe, eu vou ficar feia assim pra sempre?”. “Claro que não filha”, eu respondi.

Linfoadenite... aquele nome ficou na cabeça, e só no quarto dia de internação é que a pediatra confirmou o diagnóstico: linfoadenite aguda, uma infecção nos gânglios linfáticos, responsáveis pela defesa do organismo contra ataques bacterianos (eles situam-se na parte inferior do maxilar, logo abaixo do queixo, bochechas e orelhas). Imagina essa região inchando, inchando até não se ver mais o pescoço... não, não queira imaginar. Era muito feio de se ver.

Nós tínhamos direito a quarto, e eu pude levar videocassete e os diversos filmes dela pro hospital, pra ajudar a passar o tempo. Eu mesma não podia ficar com ela o tempo todo, pois tinha que trabalhar. Durante o dia, havia sempre alguém com ela – ou a nossa empregada/babá, ou a professora dela, que sempre vinha à tarde para visitá-la, e que numa dessas visitas trouxe desenhos feitos pela turma toda, desejando que ela melhorasse logo. Assim que saía do trabalho ia pro hospital, e ficava com ela até o dia seguinte. Também começamos a planejar a festa do 6° aniversário dela, que seria em abril.

Paralelamente, havia naquela semana uma demanda especial para o nosso departamento: o recém-empossado diretor de finanças havia me incumbido de organizar uma festa de despedida para o antigo diretor, que se aposentara depois de 43 anos de trabalho na empresa. Essa demanda me foi passada ANTES da minha filha ficar doente, mas mesmo com ela no hospital eu continuei com a responsabilidade de coordenar a organização – era um trabalho em equipe. Em princípio, eu deveria estar na festa, num sábado à noite, para fazer o cerimonial. Porém eu disse às minhas colegas que só iria se minha filha melhorasse, portanto, seria bom que alguma delas se preparasse para ser a mestre de cerimônia. Mas a resposta que recebi na mesa de reunião não foi nada compreensiva... tipo, “você é que tem que fazer isso (o cerimonial), a gente não sabe”. Apoio e compreensão total, como se vê. Pudera, ali nenhuma delas era mãe, não poderiam jamais imaginar o que eu estava passando.

A partir do quarto dia é que a infecção começou a ceder, e o inchaço no pescoço foi diminuindo lentamente. Com isso, a pediatra decidiu fazer o antibiótico via oral, para poupá-la de ter que achar uma nova veia a cada dia. Ufa... um sufoco a menos. A deformidade foi dando lugar à normalidade, porém uma bolota teimava em não ir embora do pescoço. Segundo a médica, era um abcesso que havia se formado ali porque o corpo não tinha sido capaz de eliminar todo o pus da infecção. E para retirar, tinha que operar. “Um procedimento bem simples”, disse a cirurgiã-geral.

Minha pequena estava sempre ligadíssima nas conversas. “Como assim operar? Tem que cortar o meu pescoço? Eu não quero! Vai doer”. Então teve início outra luta: a de convencê-la que era preciso tirar os “bichinhos” que haviam ficado ali naquela bolota. Fizemos a encenação diversas vezes, começando pelo “cheirinho” que o médico colocaria no nariz dela e que a faria dormir, de modo que ela não sentisse dor. Aí, um cortezinho no pescoço, depois costura e pronto! Mas era só eu colocar a mão bem de leve no pescocinho dela pra ela me dizer “tô sentindo a sua mão, vai doer”.

Chegou o sábado, dia da festa de despedida do diretor. E não teve jeito: tive que ir e fazer o cerimonial. Ninguém abraçou essa tarefa por mim. O próprio homenageado falou comigo: “estou sabendo que sua filha está internada desde segunda-feira. Por que você veio aqui hoje?” Perguntas sem resposta.

A cirurgia estava marcada para o domingo. Vesti a roupa esterilizada, entrei no Centro Cirúrgico e fiquei ao lado dela. Mas ela estava tão tensa que foram necessários quatro adultos para segurá-la a fim de conseguir entubar. Não teria como ser outra anestesia senão a geral, e ainda assim demorou uns 5 minutos até que ela parasse de se debater em nossos braços. Nesse momento eu saí da sala. E fiquei chorando do lado de fora.

Foi realmente rápido. Menos de uma hora depois ela já estava de volta no quarto e já dava sinais de retornar da anestesia. “Eu não disse que ia ser rápido e que não ia doer?” Não tinha jeito: alguma coisa ela sentia, e por isso não concordava comigo. A cirurgiã-geral veio logo depois, comentou que havia muito pus mesmo e que o material seria enviado para análise, mas que provavelmente o bicho era um tal de Stafilococo, uma bactéria muito comum em infecções daquele tipo.

No dia posterior à operação tivemos alta e fomos pra casa, depois de uma semana no hospital. Ainda era preciso continuar com o antibiótico por cinco dias, além de cuidar da ferida operatória no pescoço. A pediatra recomendou Povidine para a assepsia do local. Só não sabíamos que minha pequena era alérgica a iodo... ai meu Deus! No dia seguinte a região do pescoço estava toda vermelha, com aspecto de queimadura, embora sem dor. E lá fomos nós pro hospital de novo... pomada para a alergia, e apenas água e sabão para limpar o corte.
Depois dessa semana difícil, tratamos de nos ocupar com algo bem legal: a organização da festa de aniversário de 6 anos, quando ela ganhou uma bicicleta nova e muitos outros presentes dos amigos.

Eu sempre soube que era forte, mas tinha consciência de que essa força deveria ter um limite. Nessa semana eu descobri esse limite, da maneira mais dolorosa possível. Não tem nada mais cruel do que ver alguém que amamos sofrer. Ainda mais quando esse alguém é indefeso, não tem consciência do que está passando. E o duro é ter que continuar sendo forte nesse momento, porque essa criatura precisa de você firme – se você fraquejar, ela fica mais indefesa ainda.

Nessa semana o que me valeu foi a sabedoria Adoniraniana*: Deus dá o frio conforme o cobertor, e eu sobrevivi, certamente mais forte do que antes.

E vamos em frente!!!

* trecho da música "Saudosa Maloca": "só se conformemo, quando o Joca falou, Deus dá o frio, conforme o cobertor..."